sexta-feira, 15 de junho de 2012

"SHMILY"


Meus avós foram casados por mais de meio século. Desde o início do namoro, os dois tinham uma brincadeira particular. Eles  escreviam a palavra "SHMILY" pela casa inteira, nos lugares mais estranhos. Assim que um deles descobria a palavra, tinha que escrevê-la em outro lugar.
Meus avós escreviam "SHMILY" em pedaços de papel e os colocavam nas latas de açúcar e de farinha para serem encontrados quando fossem usar os mantimentos. Vovó fazia um pudim azul, colorido com anilina comestível e nos servia no quintal. Se nessa hora a janela que dava para lá estivesse embaçada, a palavra aparecia, escrita pelo dedo no meu avô. Toda vez que alguém tomava banho quente e o espelho do banheiro ficava cheio de vapor, um dos dois ia lá e escrevia "SHMILY". Uma vez minha avó chegou a desenrolar um rolo inteiro de papel higiênico só para escrever "SHMILY" na última folha.
Não havia limites em que "SHMILY" aparecia. Pequenos papéis com a palavra rabiscada eram encontrados no painel ou no banco do carro, as vezes pregados com durex no volante. Também colocavam dentro de sapatos ou embaixo do travesseiro. Se houvesse poeira em cima da lareira eles escreviam "SHMILY", ou então usavam as cinzas depois que a lareira era apagada. A palavra misteriosa era parte da casa dos meus avós tanto quanto os móveis.
Demorei muito para aprender a admirar o jogo deles. O ceticismo me impedia de acreditar no amor verdadeiro, aquele que é puro e não acaba. Contudo nunca duvidei do relacionamento dos meus avós. O amor era firme, ia além dos joguinhos do namoro - era um estilo de vida. A relação deles era marcada por uma dedicação e um afeto profundos, que nem todos experimentam.
Vovô e vovó ficavam de mãos dadas sempre que podiam. Beijavam-se quando se esbarravam na cozinha apertada. Um terminava as frases do outro e gostavam de fazer palavras cruzadas e outros jogos de palavras. Minha avó cochichava no meu ouvido sobre a beleza do meu avô e comentava que ele estava ficando cada vez mais atraente. Dizia que tinha sabido escolher bem. Antes de cada refeição, curvavam a cabeça e agradeciam, maravilhados, as bênçãos que tinham recebido: uma família extraordinária e a felicidade de terem um ao outro.
No entanto, uma núvem sombria, um dia apareceu e pairava sobre a vida deles: vovó tinha câncer no seio. A doença se manifestara pela primeira vez dez anos atrás. Como sempre, vovô percorreu com ela cada etapa do caminho. Cuidava dela num quarto pintado de amarelo para que ela estivesse sempre rodeada pelo brilho do sol, mesmo quando estava fraca de mais para sair de casa.
Agora o câncer voltara a atacá-la. Com o apoio de uma bengala e da mão firme do meu avô, ela ia a igreja toda semana. Mas logo ficou fraca demais para sair. Durante algum tempo, vovô continuou indo sozinho às reuniões da igreja, para orar pedindo a Deus que cuidasse de sua esposa. Um dia, porém, o que todos temíamos aconteceu: vovó partiu.
"SHMILY"a palavra estava escrita em amarelo nas fitas cor-de-rosa das coroas de flores, no funeral da minha avó. À medida que as pessoas iam saindo, fomos nos juntando em torno da vovó, pela última vez, tias, tios, primos e outros parentes. Vovô se aproximou do caixão e, tremulo, respirou fundo e começou a cantar para ela. Através das lágrimas e do sofrimento veio a canção, profunda e grave.
Eu tremia com minha própria dor, mas jamais me esqueci daquele momento, pois foi quando percebi que, embora não fosse capaz de entender a profundidade do amor deles, eu tinha tido o privilégio de testemunhar uma beleza inigualável.
S-H-M-I-L-Y: See How Much I Love You (Veja o quanto eu amo você).
Muito obrigada vovó e vovô, por permitirem que visse este amor.

Laura Jeanne Allen

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