terça-feira, 3 de fevereiro de 2015

Livro, um amor indisfarçável


Por Ricardo Gondim

À medida que amadureço (amadurecer, eufemismo para envelhecer) descubro meu novo amor: a literatura. Desde meus verdes anos, sempre vi meu pai com um livro na mão. E desde que me entendo por gente, nunca negligenciei o hábito de ler. Todavia, devido a minha vocação pastoral, por longos anos só me debrucei sobre livros teológicos e filosóficos. Eu os encarava como instrumentos de trabalho – eles me auxiliariam a exercer minhas atividades. Perdi de ler romance, novela, conto – poesia, nem pensar.
Pouco antes de completar meus 40 anos, percebi que conhecia pouquíssimo de literatura brasileira. A maioria dos autores não passava de um nome famoso da história. Sem ter folheado uma obra de José Lins do Rego ou Rachel de Queiroz, eu sabia nomear poucos livros de Machado de Assis ou de Jorge Amado. Resolvi abrir Fogo Morto, do Zé Lins e me encantei. Seu regionalizo falou comigo – devorei quase toda a obra dele. Mal imaginava que descobria uma nova paixão. Não demorou, li de uma sentada O Quinze de Rachel de Queiroz. Fiquei fascinado ao saber que a minha conterrânea o escreveu ainda adolescente, deitada de bruços no mosaico frio da sala de casa. Aquiesci à minha ignorância, eu precisava conhecer outro universo.
Não demorou descobri: minha antipatia por Graciliano Ramos era sem motivo. Vidas Secas fora tarefa odiosa do ginásio. Reli o drama da seca nordestina. A sorte de Baleia, a cadela oferecida em holocausto à fome, me sensibilizou. Depois, devorei tudo o que o velho Graça produziu. Confesso: aquelas primeiras incursões me viciaram em literatura – e agora, parece, a dependência não tem cura. Não consigo mais parar. A pena dos autores de fôlego me deslumbra.
Continuo sem querer me distanciar dos livros técnicos, lógicos. Gosto de autores com pensamentos bem estratificados. Porém, meu novo amor está na literatura. Terminei de ler Os miseráveis, de Victor Hugo, suspirei e disse em voz alta: -Não seria justo alguém passar pela vida sem conhecer este livro. A história de Jean Valjean é libelo sobre perdão, graça e amor; ele encarna, talvez, a mais bela representação de Jesus Cristo.
De igual modo, me encantei com Crime e Castigo, de Dostoievski. Em uma Rússia pobre, o livro flui de um pessimismo – que trata homens e mulheres comuns como piolhos - até chegar à redenção humana – só possível no amor.
Eu poderia mencionar uma parcela do time que me embasbacou nesses últimos anos: Machado de Assis, Alexandre Dumas,  Benedetti, Mia Couto, Franz Kafka, Albert Camus, Gabriel Garcia Márquez, Thomas Mann, Philip Roth, J. M. Coetzee, Milan Kundera, Sándor Márai, João Ubaldo Ribeiro, Muriel Barbery, entre outros.
Com a literatura, aprendo a viajar pelos meandros da alma humana. Pela mão dos grandes romancistas,  desço aos porões escuros da maldade e reconheço a extensão da iniquidade que se universalizou. Também acompanho o caminho de heróis e heroínas e redescubro a imagem de Deus, graciosamente, espalhada por toda a humanidade. Machado de Assis, por exemplo, trabalha seus personagens sem dourá-los com lantejoulas falsas - Bentinho e Capitu se parecem com sujeitos bíblicos, com sombras e luzes.
Com a literatura aprendo a desdobrar a vida para além das engrenagens do dia-a-dia. Mundos fantásticos, como os de Gabriel Garcia Márquez, foram criados para que possamos sonhar além da realidade crua. Essa capacidade de devanear, tão comum entre profetas, nos leva à inconformidade. O que existe pode ser mudado de acordo com outra maquete. O mundo que eles imaginam não deveria ser do jeito que é – os profetas narram o leão e o boi pastando juntos e crianças enfiando a mão na toca das serpentes. Profetas e poetas são arautos nos mobilizando na direção da utopia última. Quem viu outra realidade, mesmo em sonho, ou nas tintas da ficção escrita, passa a desejá-la.
Com a literatura aprendo a importância de sair dos pensamentos concretos até a capacidade de abstrair. Sutilezas da linguagem metafórica passam batidas por quem só sabe pensar no rigor do literalismo. Jesus tentou se comunicar com Nicodemos. Ele, entretanto, não possuía a sensibilidade de transcender. Treinado no farisaísmo mais fundamentalista, aquele príncipe no Sinédrio achou simplório o discurso do Nazareno. Nicodemos pensou que nascer de novo significava, concretamente, voltar ao ventre da mãe.
Com a literatura aprendo: a vida não pode ser avaliada pelos critérios de desempenho. O imensurável da alma humana não tolera ficar confinado a eficácia ou mérito. Ao ler duas obras de Tolstói, A morte de Ivan Ilitch e Anna Karenina, despertei para o valor do tempo, das relações humanas e, principalmente, para o cuidado que devemos ter com o universo da subjetividade, que é a alma humana.
Com a literatura aprendo a melhor apreciar a Bíblia. Antes eu fazia das Escrituras um manual de verdades práticas que devia usar proveitosamente. Só agora vejo sua grandeza como coleção de textos em que o Espírito comunica os tesouros da sabedoria.
Em cada página que degusto na literatura tento meditar, numa mastigação lenta, no que pode animar, exortar e consolar. Deixo-me vazar pelo inefável. Sei, a vida é mais que fenômeno químico. Existem verdades obscuras ao vexado. Por isso leio e releio com vagar. Anelo seguir na estrada estreita preferida pelos sábios. Anseio desfiar o mistério da beleza ao lado dos grandes escritores (curto, por eles, uma inveja santa). Busco na literatura a verdade fugidia, aquela que pertence a Deus, apenas.
Soli Deo Gloria


***

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Os comentários estão sujeitos à moderação. Tenha paciência. Obrigada.